O Arcanjo vive
16 Jul 2020Eeka
Já perdi a conta de quantas noites despertei assustado, em uma poça de suor e respiração ofegante.Meus sonhos ingenuos de exploração sendo interrompidos por gritos, alarmes e sons de explosão. Eu não gosto de destruição, nunca gostei. Meu maior orgulho até hoje foi ter montado Nefeli II, nave pela qual criei profundo vínculo, após nossas expedições pelos limites da galáxia.
Sim, já destrui alguns inimigos antes, em lutas das quais participei, mas nunca iniciei. No entanto a galáxia não é um santuário de paz, ao menos na parte onde vivemos, e tive encontros tristes. Perdi a Eeka, junto com as naves, algumas vezes, em ataques iniciados por piratas, arruaceiros que não respeitam ninguém e julgam-se certos, acima de toda lei e ordem, em sua indisciplina e libertinagem.
Cada perda sofrida abria uma ferida em meu coração. As naves podem ser recompradas, Eeka pode ser reconstruída, mas suas memórias, seus sonhos, seus espíritos, tornaram-se poeira estelar.
Conforme a dor aumentava, eu tentava oculta-la, tentava ignorar o aspecto invisível das naves, enganar a mim mesmo... Mas então ele aparecia. Durante a noite ele me visitava, no único lugar que realmente consigo encontrar paz, sua sombra me alcançou.
Lembro deste sonho onde estava em uma nave em chamas, tremores e cheiro de sangue, minha boca ressecada pelo medo. Apesar do terror, procurava sua ilha de comando para verificar o problema e tentar resolve-lo. Ao abrir a porta, a luz azul de uma estrela do tipo B era o único elemento que destoava da escuridão que a tripulação se encontrava. Os sistemas rugindo em malfuncionamento, todos desesperados, agitados, tentando manobrar a nave, estávamos sob ataque.
Minhas mãos começam a ficar quentes, como se meus ossos estivessem em chamas, a dor é insuportável. Caio ao chão, algemado por esta dor que só fica mais intensa.. mais intensa.. minha mão começa a ficar incandescente, a partir da ponta dos dedos, lentamente até abaixo dos pulsos. Eu olho para a tripulação de desconhecidos e tento gritar por ajuda, mas neste exato momento toda a ilha brilha em um flash vermelho e eles começam a incinerar, gritando. Olho para baixo e vejo meu corpo queimando também, porém não é na mesma intensidade que os outros. É um fogo mais brando, mais lento, que não exala fumaça da combustão, é puramente plasma. Este fogo vai escalando minhas pernas, gerando um calafrio, por minhas entranhas. Tento gritar novamente e então ele aparece. Entre as chamas e sombra, sua presença trava meu grito e ouço dizer com minha própria voz mental:
- "É de mim que você precisa. O filho das sombras deve brilhar..."
Se eu continuar insistindo em gritar, eu grito já em meu quarto, acordado.
Isto aconteceu várias vezes, entre minhas noites solitárias. Talvez eu nem lembraria destes episódios, especialmente por terem cessado após algum tempo, mas desde que entrei neste Corvette posso dizer que as vezes percebo meu coração batendo no mesmo ritmo de quando via meu corpo em chamas naquele pesadelo.
Precisei fazer alguns testes com armas em missões de combate, onde a nave se provou extremamente eficaz, mas também cruel. Por mais raiva que tenha de foras-da-lei, nunca pensei que chegaria ao ponto de sentir pena de um deles e isto aconteceu recentemente, após ve-lo sendo atacado pelo Arcanjo.
O que estou dizendo? Sou eu pilotando esta nave. Não sou?
Preciso admitir que a ferocidade dos últimos combates não é minha, não sou assim, sou um explorador. Por quê então eu construiria esta nave, com características tão peculiares? Sinto arrepios ao pensar nisto.
Espero que após ter lhe dado vida, ela finalmente me deixe em paz. Nem mesmo a vastidão do espaço me colocou tão próximo dos limites de minha sanidade quanto este cruzador negro.