Cap 17 - CICATRIZ
30 Apr 2022Kenjiro Tanaka
Depois de mais alguns dias de estudo e preparação, Kenjiro, Aileen e Valok finalmente iniciam o processo de remontagem da androide. Levaram dias para repor as peças do tórax que foram danificadas, reconectar os membros, reparar a pele sintética e deixá-la uniforme com a cobertura das peças novas. Eles perdem a noção do tempo enquanto estão focados e empolgados na reconstrução. De vez em quando alguém lembra que eles precisam comer e beber alguma coisa.Finalmente a androide parece estar perfeitamente reconstruída. Falta saber se os dias de trabalho duro na correção do código da androide realmente vão dar resultado. Mas primeiro, eles a vestem com um macacão da Silver Hunter Order. É um uniforme da Aileen, que por sorte é do mesmo tamanho da Harvre.
‘Bom, Kenjiro, pode fazer as honras?’ - fala Valok, bastante empolgado - ‘Afinal quem trabalhou mais tempo nesse projeto foi você.’
‘Vai pai, liga logo. Também estou ansiosa para ver se deu tudo certo.’ - ela também não consegue conter um grande sorriso.
‘OK, vamos lá… Bateria carregada no talo, OK; software de controle atualizado e instalado, OK; Cavalo de tróia que havia no código antigo removido, OK; Acho que agora vai.’
A partir do seu datapad ele dá o comando para religar a andróide que está deitada na mesa de testes, conectada por um cabo e firmemente presa à mesa, para evitar surpresas desagradáveis. Alguns segundos depois ele vê o feedback do sistema na tela. O sistema interno dela dá boot corretamente, há uma pausa e a tela fica preta. Eles ouvem uma espécie de gemido. Os olhos dele ora fixam a andróide, ora focam a tela do computador. De repente ele vêem um leve espasmo em um dos braços dela. Então os olhos começam a se abrir e, ao mesmo tempo, uma imagem começa a se formar na tela do datapad. A imagem fica melhor definida e ele vê o teto da nave.
‘Harvre, consegue me ouvir? Como se sente?’ - pergunta Aileen
As palavras da Aileen ecoam pela saída de som do datapad e logo se inicia uma reverberação, uma microfonia. Rapidamente Kenjiro desliga o speaker do datapad e a microfonia cessa.
Ela mexe a cabeça, olhando em volta. São os mais longos segundos da vida de Kenjiro.
‘Onde estou?’ - Harvre pergunta - ‘Por que não consigo me mexer?’
Eles explicam que ela está na nave do Kenjiro, que está deitada ali porque havia sido resgatada da Farragut e estava em “recuperação”.
Depois da apresentação inicial e de conversarem calmamente, contam sobre como a resgataram da Farragut, tudo o que aconteceu e foi descoberto após aquele incidente, até o momento em que ela foi religada.
A expressão é um misto de fúria, ansiedade e incompreensão, e ela grita - ‘Eu sou uma o que!?!’
O grito, que inicialmente era igual ao de uma mulher, transforma-se num misto de um estrondo agudo, um guincho animal com um ranger de metal. É aterrador!
Ela rompe as amarras que a mantinham presas à mesa como se fossem feitas de papel. Em menos de um segundo está de pé sobre a mesa, punhos cerrados e extrema ira estampada nos olhos e na expressão facial.
No momento que ela salta na direção de Kenjiro - ‘Sigma!’ - ele ordena calmamente. No meio do salto a androide parece desligar. Ela cai inerte no piso da nave, emitindo um som grave.
Valok, Aileen e Kenjiro pegam Harvre do chão e a recolocam na mesa.
‘Sigma, matenha o protocolo Carbonita ativo até segunda ordem minha’ - Kenjiro ordena.
‘Caramba, Kenjiro! Mas o que foi isso?’ - Valok fala assustado - ‘E o que diabos é esse protocolo Carbonita?’
‘Meu pai desenvolveu esse protocolo como uma medida preventiva, depois que vimos…. Bem… assistimos do que ela é capaz. Ele mantém a Harvre quase que totalmente desativada, permitindo que ela apenas ouça, fale e veja.’ - Aileen explica tranquilamente.
Kenjiro acessa o datapad e reativa a androide.
‘Eu imaginava que ficar sabendo da verdade não seria muito fácil pra ela, mas não achei que o choque chegaria a esse ponto. Ela ativou o modo de combate “inconscientemente”. Eu e Aileen vimos isso acontecer antes. Quer dizer, a gente assistiu isso quando recuperamos algumas gravações de vídeo que estavam armazenadas na memória dela.’
‘Ei, desgraçado! Eu estou aqui! Por que não consigo me mexer?’ - Harvre fala enraivecida
‘Calma, Harvre. Tivemos que paralisar o teu corpo por medida de segurança. Nossa segurança.’ - diz Aileen num tom calmo.
‘Jovem, a gente sabe que isso tudo é extremamente chocante. Não temos nem como imaginar como é ficar sabendo desse tipo de verdade. Mas infelizmente é isso mesmo, estamos te contando e mostrando a verdade.’ - diz Kenjiro levantando os ombros e as sobrancelhas.
‘Harvre, não foi meu pai, não fomos nós que fizemos isso contigo. Não fomos nós que te transformamos num cyborg ou androide. Nós apenas te resgatamos da Farragut pirata, te trouxemos pra cá e te ajudamos a voltar ao…’ - Aileen pausa um pouco - ‘ “bem… ao normal”, digamos assim.’
‘Soltem-me! Deixem eu me mexer!’ - Harvre fala ainda com raiva.
‘Calma, calma. Olha só, tu tens ideia de quando tudo isso aconteceu?’ - Kenjiro indaga.
Ela continua com uma expressão de raiva e de quem está se esforçando para se mover e tentar sair dali.
Todos ficam quietos, dando tempo para ela digerir a bomba que acabaram de lhe enfiar goela abaixo. Longos minutos se passam até que a expressão no seu rosto muda. Ela fecha os olhos e fica assim por um longo momento.
‘Se isso for realmente verdade… foi depois do ataque à Academia?’ - Harvre pergunta em um tom mais calmo.
‘Muito bom, guria!’ - Kenjiro fala e sorri - ’Foi exatamente neste ponto. Depois que te resgatamos, tivemos muito trabalho para tentar descobrir o que havia acontecido. Nossa primeira surpresa foi que antes de entrar na Farragut, as leituras da minha nave indicavam apenas um ser vivo, uma pessoa dentro da ponte de comando da Farragut. Então eu invadi a ponte, mas quem eu encontrei lá foi tu. Pensei que se tratava de uma pessoa melhorada ciberneticamente. Então te tirei daquele inferno.’
Aos poucos ele vai contando a ela sobre todas as etapas de exames, testes, tentativas de recuperar as memórias dela. Todas as buscas e pesquisas que fizeram, inclusive a invasão aos sistemas Imperiais que Kenjiro realizou para descobrir o que havia acontecido.
Como ela parece ter se acalmado e estar realmente interessada em ouvir o que eles têm a mostrar, Kenjiro pede que Sigma desative o protocolo Carbonita.
Ela recobra os movimentos enquanto Aileen fica de olho em possíveis alertas ou alteração de protocolo no sistema operacional da androide. Harvre senta na mesa, testa os movimentos das mãos, pés e pescoço. Tudo parece normal.
‘Cacete, mas é muito normal. Muito natural! Real!’ - ela fala enquanto se toca, se examina.
‘É realmente impressionante, né?’ - Aileen fala olhando para ela e sorrindo
‘Kenjiro, acho que seria bom contar a ela TUDO o que a gente descobriu.’ - Valok fala com um olhar sério.
‘Concordo, Valok.’ - Kenjiro fala enquanto coloca a mão no ombro da androide - ‘Bom, agora é que o bicho pega…’ - ele levanta as sobrancelhas - ‘acontece que enquanto nesses dias que trabalhamos duro pra te reparar, finalmente acabamos descobrindo que tu é bem mais do que os olhos vêem’
Ela o olha intrigada, mas nada diz.
‘Kenjiro, deixa de enrolar’ - fala Valok - ‘É o seguinte, a gente descobriu que tu tem algumas “partes” de Thargoid e também tecnologia Guardian’
‘Caralho, sério que pela primeira vez tu conseguiu ser tão direto assim, Valok’ - Kenjiro fala, então ele e a filha riem enquanto Valok apenas dá de ombros.
‘Como é?’ - Harvre fala num tom alto, totalmente surpresa - ‘Thargoid e Guardian?!?’
‘E tecnologia humana, claro.’ - complementa Aileen com um sorriso.
‘Tá, tá… essa é a parte nerd da jogada. Mas tem a parte histórica que também nos interessa.’ - Kenjiro interrompe - ‘Harvre, não conseguimos ter acesso a todas as tuas memórias ou lembranças. Alguns dados estavam corrompidos e, por conta da criptografia, ficou muito difícil conseguir acessar essas informações. Mesmo assim, o que descobrimos foi que após o ataque na Academia, tentaram te reviver várias vezes. A cada tentativa ficava mais difícil. Então um oficial de alta patente, que descobri ser de uma divisão de espionagem, entrou na jogada e deu carta branca para colocarem em prática o projeto de transferência da tua consciência para um… bem, UMA androide. Os teus ferimentos tinham sido realmente muito graves, não havia mais salvação.’
Então ele senta ao lado dela, na mesa - ‘Porém, além dessa intervenção dos cientistas imperiais, houve um pequeno problema. Havia, ou ainda há, espiões da Federação infiltrados na equipe. Secretamente eles inseriram um código indevido, um cavalo de tróia no código da androide… Bom… no teu código.’
‘Então quer dizer que o Delaine não teve nada a ver com isso?’ - ela pergunta
‘Calma aí. O ataque à Academia foi obra do pessoal do Delaine sim.’ - a ira se apossa dos olhos dele - ’Te usarem no projeto de transferẽncia de consciência foi obra de uma divisão secreta do Império. Mas a inserção desse código malicioso foi coisa da Federação.’
‘Mas esse tal código malicioso fazia o quê?’ - Harvre pergunta e olha para os três, em busca de alguém que tenha a resposta.
‘Demoramos muito tempo pra conseguir chegar a essa informação. Não sabemos bem o que seria o gatilho para ativar esse código. Se seria ativado remotamente por alguém; se algum evento ou data/hora dispararia o código, etc. O que nós sabemos é que havia um alvo bem específico.’ - Valok explica.
‘Nosso Imperador, Arissa Lavigny-Duval.’ - Kenjiro fala e põe a mão no emblema do Império que ostenta no ombro esquerdo do traje.
‘O que!? Eu iria atacar Vossa Majestade Imperial?’ - Harvre pergunta espantada.
‘Uhum! A própria. Imagina a treta!’ - diz Aileen.
‘Mas fica tranquila. A gente removeu esse código malicioso. Então agora a Arissa… aham… Vossa Majestade Imperial estará segura.’ - diz Valok com uma expressão meio envergonhada.
‘Minha nossa! E eu estive na frente dela após sair do “hospital”. Foi durante aquela apresentação do Sigma…’ - Harvre põe as mãos na cabeça - ‘Ei, espera um pouco! Após aquela apresentação, um oficial me chamou para um canto. Não sei o nome dele, eu apenas o chamo de Cicatriz. Ele me falou de um espião do Delaine dentro do Império, que seria o Oficial Thyus, aquele filho da…’ - agora é ela que faz uma expressão envergonhada - ‘Aham… bem, esse desgraçado teria sido investigado pelo meu pai. Por isso ele foi sequestrado e assassinado.’ - ela pensa um pouco - ‘Pra encobrir a espionagem! E claro, quem “investigou a morte do meu pai” foi o próprio Thyus.’
‘Opa, isso é muito sério! Esse oficial te deu alguma prova, algo além da história que ele te contou?’ - pergunta Valok.
‘Sim, ele me deu um nanodrive, que na mesma hora eu conectei ao meu remlok. Porém nós fomos atacados e o Cicatriz foi morto. Acho que fui alvejada com munição paralizante. Eu fui capturada logo em seguida… e depois já acordei dentro da nave, sem meu remlok.
‘Ah não! E agora, sem provas?’ - Aileen dá um soco na mesa.
‘Não necessariamente, comandante.’ - fala a voz sintetizada de Sigma - ‘No referido dia da minha apresentação houve um upload de dados para o computador de uma Hauler que estava pousada naquela estação. Os dados foram transferidos de um remlok.’
‘O que?’ - fala Harvre quase que num grito, pela surpresa.
‘Segredinho nosso, ok?’ - diz Kenjiro com um sorriso maroto - ‘Eu desenvolvi Sigma de forma a ajudar os pilotos imperiais. Mas, como salvaguarda, fiz com que funcione como uma “consciência unificada”. Ou seja, de dentro da minha nave o Sigma pode ter acesso às suas outras cópias, que estão em outras naves. É apenas uma ferramenta de segurança. Digamos que um piloto resolva trair o Império. Nós temos como identificar o que o marotinho está aprontando, guardar as provas e enviar para o alto comando.’
‘E tem como Sigma recuperar esses dados?’ - Harvre fala com os olhos arregalados.
‘Positivo!’ - responde Sigma - ‘A nave em questão está registrada no Império sob a identificação INV-538. Entretanto, no momento não posso acessá-la, pois a nave está desligada.’
‘Totalmente desligada?’ - Harvre pergunta ficando em pé.
‘Bem, ela pode estar passando por reparos de baixo nível em alguma estação.’ - interrompe Valok - ‘Nessas ocasiões a nave inteira é desligada.’
‘Ou foi destruída né. Desculpem, mas é uma possibilidade’ - diz Aileen.
‘É verdade. Mas isso a gente descobre facilmente.’ - fala Kenjiro - ‘Antes de seguirmos essa investigação, o que interessa agora é saber se tu estás bem, Harvre.’
‘Se estou bem? Se estou FUNCIONANDO bem?’ - ela pergunta um tanto chateada.
‘Ué, pra nós tu parece, fala e age como uma pessoa normal. Bem… exceto quando entra em modo de combate e alopra geral, né.’ - Aileen ri muito.
‘Agora lembro que vi a gravação. Aquilo foi punk mesmo!’ - complementa Valok
‘Harvre, pelo que vimos nos teus registros, tu era uma cadete da Academia Imperial. A instrutora que estava contigo naquele voo só fez elogios no relatório daquele treinamento fatídico. Bem, eu suponho que tu gostas mesmo de voar, certo?’ - Kenjiro pergunta dando uma piscada.
‘Esforcei-me muito pra isso. Mas não estou mais na academia, me colocaram “de castigo”. Não vão mais me deixar voar.’ - ela responde com um ar chateado.
Ele olha para Valok e para Aileen. Dá uma piscadinha para eles, olha para Harvre e com um sorriso enquanto se aproxima dela e diz - ‘Bem, aqui as coisas acontecem de uma maneira um pouco diferente’ - aponta e toca no emblema que está no macacão dela.
‘Bem vinda à Silver Hunter Order, recruta Harvre!’